Carta Entre Amigos - Sobre Medos Contemporâneos
Quarta Carta:
"O amor é o maior de todos os artesanatos. Não amamos da noite para o dia. Amor é construção que requer empenho, assim como a trama dos teares requer demora na escolha das linhas e das cores."
Meu amigo Gabriel
Suas palavras requerem calma. É como caminhar pelas vielas de uma cidade cheia de surpresas. Há recônditos que escondem preciosidades. Eu vou no ritmo em que me é possível caminhar, desejoso de sorver ao máximo este horizonte repleto de possibilidades. Ao mesmo tempo, vivo a tentação de ficar um pouco mais, demorar-me nas curvas das entrelinhas. Se por um lado lhe ofereci a mesa posta, por outro você me ofereceu o melhor dos alimentos: uma boa prosa.
Aceito o poema de Drummond. Também quero andar de mãos dadas. Esta metáfora tem o poder de curar o mundo, já que uma das maiores dores que podemos identificar nos dias de hoje é o medo da solidão. Sofremos de uma orfandade que parece incurável, justamente porque não sabemos onde pulsam as suas causas. Apenas sentimos, descobrimos na carne o receio de que nos falte alguém que possa segurar nossa mão no momento do desespero e da solidão.
Há uma reflexão que me foi proposta, nos idos tempos da minha graduação em filosofia, quando eu ainda descobria os encantos desse saber que mudou minha vida. "Tudo o que é sólido desmancha no ar." A frase de Marx estava escrita no quadro, e o professor nos instigava a pensar a pós-modernidade a partir dela.
Recordo que o primeiro pensamento que me ocorreu foi a ligação do conceito de sólido com conceito de amor. Cresci ouvindo que o amor é um atributo divino, esquecido nos humanos, e que o poder de nos salvar de nossas misérias. Cresci acreditando e, sobretudo, experimentando na carne que o amor é um recurso que nos faz eternos. Só ele é capaz de nos livrar da morte definitiva, do esquecimento absoluto, porque nos reveste de memória, que será celebrada cada vez que formos recordados.
Gabriel, gosto de pensar que a primeira experiência humana que fazemos neste mundo é a experiência humana que fazemos neste mundo é a experiência do cuidado. A imanência histórica e social humana é uma situação de finitude e de corporeidade dependente. Essa imanência nos empurra para o colo, para a necessidade de sermos recolhidos, embrulhados, acariciados, adotados. É assim que entramos no mundo: necessitados. Mas o limite é belo. A dependência é bem-vida. É nela que reconhecemos o sólido onde firmamos os pés. É nela que lançamos a base de nossa condição saudável de homens e mulheres naturalmente afeitos e dispostos ao amor. A experiência antropológica do cuidado é uma resposta à nossa precariedade.
A frase de Marx está ligada a um contexto muito mais amplo, e você sabe disso melhor que eu. Marx fala da instabilidade das estruturas que até então sustentavam as sociedades. Os poderes estavam diluídos, e o tempo das certezas absolutas estava sendo reduzido a pó. Marx teve grandes motivos para dizer tudo isso. A pós-modernidade estendeu na história as consequências dessa fragmentação. As grandes mudanças sociais moldaram uma nova antropologia, cuja principal característica é seu caráter provisório. É lamentável, meu amigo, mas a mesma relação temporária e utilitária que estabelecemos com as máquinas costuma ser repetida e aplicada nas relações humanas. Tudo o que é sólido desmancha no ar, inclusive o amor...
Tenho me interessado muito por essas questões. Elas me tocam diretamente, pois, como padre, tenho acesso aos bastidores da humanidade. Tenho descoberto dores muito comuns, doendo em pessoas muito diferentes. Gente que gostaria imensamente de experimentar um amor compromissado, mas que ao mesmo tempo se sente incapaz de construir uma relação equilibrada e saudável. Sua carta me fez pensar ainda mais sobre tudo isso. Ela fala de amor, mas fala também de insegurança...
Zygmunt Bauman, sociólogo polonês que você conhece tão bem, faz uma leitura muito interessante dos dias de hoje a partir do conceito de líquido. O autor sugere que boa parte das neuroses contemporâneas nasce juntamente da fragilidade dos laços humanos.
Estamos cada vez mais inaptos para os vínculos duradouros. O que parece prevalecer é o desejo incontido de paixões avassaladoras, sentimentos à flor da pele, novidades constantes. É nesse emaranhados de encontros e desencontros, de chegadas e partidas, que o amor e a paixão mostram a sua face.
É curioso, meu caro amigo, mas também me perco na tentativa de estabelecer os limites conceituais entre amor e paixão. Tenho intuído que nisso mora a diferença: a paixão sobrevive de pressas; o amor, de demoras. A paixão é um fogo alimentado pelo álcool. Queima rápido. O amor parece ser fogo a lenha. Tem ritmo diferenciado.
As relações humanas precisam voltar a ser artesanais. A revolução industrial nos legou a produção em série. Levamos a sério o aprendizado. Deixamos de ser artesanais em quase todos os aspectos da vida. Tenho saudade dos velhos teares, onde a trama das linhas nos presenteava com resultados surpreendentes. A trama final nascia de mãos afeitadas a trabalhos de minúcias.
Meu caro Gabriel, o amor é o maior de todos os artesanatos. Não amamos da noite para o dia. Amor é construção que requer empenho, assim como a trama dos teares requer demora na escolha das linhas e das cores.
Gosto de compreender o amor como eleição. Alguém que até então estava perdido no meio da multidão foi eleito. Tornou-se sagrado, saiu do contexto que era de todos e agora desfruta de um horizonte particular.
Na teologia, trabalhamos o tempo todo com o conceito de sagrado. É tão sugestivo. É sagrado tudo aquilo que foi recolhido do espaço profano para ser apresentado sobre o altar do sacrifício. O profano, isto é, o que estava fora do templo, foi eleito, recebeu sagração, tornou-se outro, foi elevado, constituído em dignidade irrevogável.
Quem dera as pessoas se amassem assim. Quem dera as pessoas pudessem compreender e experimentar o amor a partir desse comprometimento conceitual.
Gabriel, tenho medo de passar pela vida sem verdadeiramente experimentar os desdobramentos mais salutares da minha capacidade de amar. Vejo as pessoas tão perdidas em suas paixões, tão fadadas ao destino trágico da solidão, assim como foi o destino de Macabéa, a alagoana de ovários murchos em que Clarice Lispector soprou ar de literatura e fez viver nas páginas de A hora da estrela.
Meu amigos, Macabéa morreu grávida de futuro, mas não o partejou porque não amou. Limitou-se a viver com os olhos presos no raso da vida, no presente medíocre e só. Do cais do porto, não quis a possibilidade da partida. Ficou somente com o aperto no coração cada vez que ouvia o sopro do navio anunciando novos destinos. Não aprender quem amar é partir. É rumar nas venturas que nos proporcionarão encontros e crescimentos. Preferiu permanecer com os ovários murchos, metáfora de uma infertilidade que abrange a totalidade da vida.
A hora da estrela foi a hora da morte. Não havia outro desfecho possível. Macabéa não poderia chegar viva ao outro lado da avenida, pois não teria sonhos para continuar. Não teria um amor que a encharcasse de motivos e a ajudasse a suportar as dores da vida.
Você tem razão quando diz que o amor não pode ser experimentado fora da dor. Aliás, ando pensando que a dor só tem sentido se estiver costurada na bainha do amor. O que nos faz querer ficar ao lado, ouvir o sopro do navio e aceitar os desafios da nova viagem é a certeza de termos sido eleitos. Amados e amantes comprometidos pela mesmas causas, resolvidos a querer a vida com todas as suas exigências.
Os apaixonados, isto é, os que sofrem de paixão, nem sempre chegam ao final. Perdem-se antes do término. Morrem na travessia, assim como morreu Macabéa. A paixão não costuma ter planos para o futuro. É pragmática. Já os amorosos não se limitam ao tempo presente, mas estabelecem metas que possam durar a vida inteira. Os apaixonados nem sempre são portadores de ovários férteis, tampouco costumam estar grávidos de um futuro que os faça driblas a sedução da morte prematura.
É, meu caro amigo, também tenho procurado não morrer. Tenho diante dos olhos que há sempre um modo de encontrar alguém que necessite do meu amor. Castidade só tem sentido se for compreendida assim. Caso contrário, é ovário murcho, tal qual o de Macabéa, incapaz de dar à luz quem quer que seja. Castidade não é restrição, mas possibilidade. Sou um homem livre para andar pelos corredores e travessias do mundo. A liberdade que experimento é escolha. Ninguém me obrigou a assumir o que assumi.
Meu desejo é encontrar as Macabéas que estejam prestes a atravessar a avenida da morte. Restituir sonhos é uma pretensão que carrego comigo. Ela nutre o meu desejo de ser casto, de ser do outro, não como objeto a ser usado, mas como um sentido a ser proposto. Carrego em mim um ofício que reconheço santo. Estabelecer as pontas da corda. Ser homem religioso, no mais profundo do termo. Viver para unir, para religar, congregar, para restaurar o que está danificado. Nestes tempos líquidos, ousar ser um lugar de segurança. Por meio de um gesto solidário, uma palavra bendita, uma celebração restauradora.
Meu amigo Gabriel, Bauman é muito perspicaz em sua análise. O amor é cada vez mais líquido, provisório. Escorre pelos vãos dos dedos sempre que tentamos segurá-lo, porque temos medo do compromisso que dele nascerá. Ao mesmo tempo que dele necessitamos, nós o rechaçamos. Estranho, não é mesmo? Queremos o valor da moeda, mas não queremos suas duas faces. Talvez seja por isso que o amor tem sido reduzido ao horizonte das paixões, e nisso consiste a gênese de tantos medos, sofrimentos e frustrações.
Eu me recordo do tempo em que morava nas belas serras do estado de Santa Catarina! Sempre que terminava o verão, era comum eu encontrar os amigos absorvidos pelos sofrimentos que sobravam das paixões de veraneio. O sofrimento existia porque nem sempre a paixão do litoral se transformava em amor na serra. Ele sofriam de esquecimentos...
Ser esquecido é sempre muito ruim, concordo. Ser relegado, deixado de lado, provoca marcas dolorosas na alma. Só quem o foi sabe o que digo. Tenho encontrado muitas pessoas que sofrem de insegurança crônica, justamente porque estão mergulhadas em teias de relacionamentos absolutamente impessoais. Hoje estão juntas, mas não sabem se amanhã serão atendidas ao telefone caso queiram ligar, falar, contar alguma coisa.
Você fala em sua carta da beleza de ver as pessoas voltarem aos seus destinos, certas do amor que as esperava. É verdade. Ser esperado é certeza de ser amado. Saber que há alguém preparando a nossa chegada faz-nos acreditar no amor. Recorda-se do teólogo Jürgen Moltmann? A espera é operante...
Gosto de conferir tudo isso no cotidiano. Meu mundo é comum. Nada de extraordinário acontece por aqui, meu caro amigo. Vejo as mulheres nos pontos de ônibus com suas sacolas plásticas fartas de realidades que desconheço e intuo: a felicidade anda embrulhada de diversos modos. Segue na simplicidade de um litro de leite, ovos que serão preparados ao som bonito de violas triste, rádio de pilha sobre a geladeira branca, crepitar de chamas em tarde incendiada por motivos breves, mas felizes. O amor acontecendo como pode, onde alguém o consentiu. O amor em sua cena comum, capaz de sobreviver de bordas simples, sem muitos detalhes rebuscados.
Gente como Rachel de Queiroz, que mesmo na escuridão da noite encontra um lampião para iluminar uma página em branco, pronta para ser escrita. Literatos e amantes possuem os mesmos motivos. Não há literatura sem dor. A arte, a verdadeira arte, nasce das ausências do artista. A beleza é o fruto do processo alquímico gestado no interior da alma. O bom artista sobrevive a ausências, pois nelas estão as futuras criações. O mesmo podemos dizer do amor. O amante nunca esgota a criatura amada, porque o esgotamento representaria o término do amor. O amor sobrevive do que sabemos, mas sobretudo do que ainda não sabemos. É a prevalência do mistério, da sacralidade, que nos faz continuar elegendo o outro como lugar e causa da nossa celebração.
Gabriel, é tudo tão instigante, mas ao mesmo tempo tão limitado. Minha palavra é vítima da minha inteligência. Quero dizer, mas não alcanço com minha palavra o que diz meu pensamento. Mas nisso também está o motivo de minha alegria. Não desisto de procurar. Um dia ainda acharei a palavra certa. Um dia encontrarei a explicação do amor que Teresa de Calcutá nutria pelos pobres. Um dia descobrirei os motivos que Deus tem para insistir em conduzir o grafite de minha fragilidade.
Um dia entenderei a poesia de Vinicius. Um dia compreenderei Orfeu, Tristão, Eurídice, Isolda, Macabéa...
Um dia responderei à sua carta.
Um dia, meu caro amigo, um dia...
Mas, antes de terminar, já que falamos tanto de amores e esquecimentos, gostaria de lhe deixar um verso breve, mas de motivo longo. Um verso que parece ter nascido dos mesmos medos que aqui comentamos, e que se desprendeu das mãos do genial Mário Quintana.
É com ele que me despeço.
Se me esqueceres, só uma coisa, esquece-me bem devagarinho.
Com carinho,
Pe. Fábio